segunda-feira, 8 de outubro de 2007

O BRASIL DENGOSO DE CAYMMI /Paulo Roberto Pires



Com rigor e doçura, o poeta e letrista Francisco Bosco traçou um pequeno grande retrato de Dorival Caymmi no livrinho da série “Folha explica” dedicado ao compositor baiano. Gasta 112 páginas (incluídas discografia e bibliografia) para explicar porque suas pouco mais de 100 canções, compostas em 92 anos, redefiniram de diversas formas o que o Brasil sente e canta. Esquadrinhando esta produção em “sambas sacudidos”, “canções praieiras” e “sambas-canção”, Bosco atende a várias gostos: convida a descobrir Caymmi e, também, viaja com propriedade (ele é doutorando em teoria literária) e na medida certa sobre um artista cuja singularidade compara, não sem razão, à Clarice Lispector na literatura e Iberê Camargo nas artes plásticas. Com vocês, o autor, em conversa com Tocatudo:Caymmi é unico, não tem predecessores nem sucessores na MPB. Depois de mergulhar nos mares caymmianos com ouvidos e olhos de crítico, como você definiria o essencial desta obra?Francisco Bosco - Em poucas palavras: alegre, solar, imanente, erótica, original e permanente. É seguramente uma das obras mais importantes que a cultura brasileira fez surgir em seus pouco mais de 5 séculos de aventura. Penso que dessa obra, na qual o Brasil é representado como uma cultura feliz - conquanto às vezes trágica, como nas canções praieiras -, pode-se dizer o mesmo que Caetano afirmou a respeito da bossa nova: o Brasil precisa merecê-la. O que, em Caymmi, te fala mais essencialmente como crítico? E como poeta e letrista?Tanto como crítico quanto como poeta e letrista, o que é para mim essencial em Caymmi é que suas canções sempre emocionam: ou comovem os pés e quadris, como nos sambas sacudidos, ou os olhos e ouvidos, como nas praieiras, ou o coração, como nos sambas-canção. São invariavelmente simples e exatas: não acertam nunca menos do que o menor círculo do alvo.
Penso que em música popular o critério de valor fundamental é o desejo de repetição, isto é, a vontade que temos de escutar várias vezes, da capo, a mesma canção. E, para tanto, penso que a emoção é um ingrediente imprescindível; de resto, já Ezra Pound afirmara o mesmo a respeito de poemas: “Only emotion endures”.No cruzamento de várias áreas de tua análise, você menciona o “homem cordial” de Sergio Buarque e o compara, de certa forma, com o jeito delicado de Caymmi ver e viver a sociedade brasileira. O que este “homem dengoso” tem a ensinar ao Brasil?A cordialidade é um comportamento que está em xeque no Brasil contemporâneo. E isso para bem e para mal, pois são as duas faces da moeda que parecem estar sendo transformadas. De um lado, como efeito positivo, temos conquistado, nos últimos 10 a 15 anos, uma maior solidez das instituições, uma consolidação da democracia, uma maior competência em setores que vão do esporte ao cinema nacional. De outro lado, a relação entre classes sociais distintas vem se tornando freqüentemente hostil, corroendo a ponte afetiva que a cordialidade lançava por sobre esses abismos. Assim, parecemos estar menos cordiais, a um tempo, em dois sentidos: mais afeitos à lei, à abstração, aos princípios universais que se contrapõem ao “jeitinho” (o que é muito positivo); e mais duros, muitas vezes vendo o outro como um agressor em potencial, o que leva a terríveis tentações segregacionistas ou coisas piores (o que é, claro, muito negativo). Tudo isso, como se pode imaginar, é demasiadamente complexo; recomendo aos interessados que leiam os recentes livros de João Cezar Castro Rocha, sobre a cordialidade no Brasil hoje, e o que um intelectual como Contardo Calligaris vem escrevendo sobre o tema. E onde Caymmi entra nisso tudo? Sua obra parece nos indicar, a todo momento, certa delicadeza que a experiência histórica recente do Brasil está apagando de nossos corpos e de nossa língua. Suponha que o sujeito nasceu em Marte e não conheça Caymmi.